Uma
das frases mais incompreensíveis que Jesus pronunciou foi a que disse
antes de morrer na cruz. Depois de várias horas de agonia, e
pressentindo que a sua morte era iminente, ele soltou um grito terrível:
"meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" (Mt 24,46; Mc 15,34).
Estas misteriosas palavras, somente referidas pelos evangelistas
Mateus e Marcos, sempre intrigaram os leitores da Bíblia. Será que Jesus
sentiu que a sua Missão havia fracassado? Teria Jesus pensado que
estava morrendo como um filho abandonado pelo Pai? Tomadas ao pé da
letra, estas palavras poderiam fazer-nos crer que Jesus morreu
desesperado...
Entretanto não foi assim. Jesus ao pronunciar esta frase, na
realidade estava rezando um Salmo. Com efeito, se procurarmos em nossa
Bíblia, veremos que o salmo 22 começa precisamente assim: "meu Deus, meu
Deus, por que me abandonaste?" e continua: "apesar dos meus gritos,
minha prece não te alcança! De dia eu grito, meu Deus, e não me
respondes. Grito de noite, e não fazes caso de mim". Por que Jesus
pronunciou um salmo tão amargo e desalentador na hora da morte?
Mas não foi assim... o salmo 22, intitulado "Oração do justo
sofredor", é um dos salmos mais esperançosos de toda Bíblia. A primeira
parte deste salmo (v. 2-23) descreve os sofrimentos por que passa um
homem inocente. Já a 2ª parte (v. 24-32) é um magnífico ato de confiança
em Deus que o livrará de todas as angústias: "vocês, fiéis do Senhor,
louvem-no, porque não sentiu desprezo nem repugnância para com o pobre
desgraçado; nunca lhe negou ajuda; quando pediu auxílio foi atendido; os
que buscam a Deus o louvarão e viverão eternamente; meu viver é para
ele; minha descendência há de servi-lo e proclamará o Senhor às gerações
futuras". Então por que os evangelistas citam as primeiras palavras e
não as últimas que são cheias de esperança? Porque para a mentalidade
judia citar o começo de um salmo equivale a citar o salmo inteiro.
Portanto, ao colocar as palavras iniciais, os escritores dão a entender
que Jesus recitou todo o salmo. Assim, também, entendeu o autor da carta
aos Hebreus (2, 11-13) quando, ao falar da paixão do Senhor, diz que
Jesus na cruz rezou o final do salmo 22, e não as palavras dolorosas do
começo, que são as referidas pelos evangelistas.
Esta resposta, porém, nos leva a nos propormos outra questão. Por que
os Evangelistas conservaram esta recordação tão insignificante da
recitação de um salmo por Jesus, quando detalhes que os historiadores
julgam mais importantes (como a precisão cronológica da paixão, a forma
que tinha a cruz, o modo como Jesus foi crucificado) nem sequer são
mencionados?
Para responder a isto é necessário ter em conta algo que nos dias de
hoje não chama a atenção das pessoas como outrora, isto é, o escândalo
que significou a morte de Jesus para os judeus daquele tempo. E isto por
várias razões.
Em primeiro lugar, porque na época de Jesus, existia a convicção de
que, quando uma pessoa era fiel a Deus e cumpria seus mandamentos, Deus
sempre o acudia para salvá-lo e não permitia que nenhum mal o
acometesse.
Todo o livro de Daniel, por exemplo, expõe esta idéia: aos quatro
jovens judeus que se negaram a comer alimentos proibidos, Deus os
sustenta milagrosamente (1, 3-15); A Azarias e seus companheiros,
jogados na fornalha ardente por não adorarem a estátua do rei
Nabucodonozor, o fogo não os toca (3, 46-50); ao próprio Daniel, atirado
na cova dos leões por ser fiel a seu Deus, o Senhor o liberta são e
salvo (6, 2-25); Suzana é libertada das falsas acusações contra sua
honra (13). E o Livro da Sabedoria afirma: "se o justo é filho de Deus,
Ele o ajudará e o livrará das mãos de seus inimigos (2 ,18)". Todo
judeu, pois, nutria consigo esta idéia de que Deus salva sempre o homem
inocente. Por que então não salvou Jesus? A conclusão que se impunha
era: Jesus deve ter sido um pecador.
Em segundo lugar. Porque Jesus foi condenado a morte pelos
representantes de Deus, isto é, pelos Sacerdotes. E o fizeram em nome da
lei de Deus: "nós temos uma lei, e segundo esta lei ele deve morrer."
Exclamaram seus acusadores perante Pilatos (Jo 19,7).
Finalmente, porque o tipo de morte que sofreu (pendurado numa cruz), o
convertia automaticamente, segundo a Bíblia, em um maldito de Deus. De
fato, um versículo do livro do Deuteromônio afirma: "aquele que está
pendurado no madeiro é um maldito de Deus (21, 23)". E de todas as
mortes, justamente essa ignominiosa foi a que Jesus sofreu. Para o povo
judeu, então, Jesus morreu: a) sem o auxílio divino; b) em nome das
autoridades religiosas; e c) maldito por Deus. Era possível uma morte
mais vergonhosa? Como podiam os primeiros cristãos convencer o povo que
Jesus era o Messias, o Filho de Deus que veio salvar o seu povo?
Diante deste escândalo, difícil de dissimular, da morte ignominiosa
de Jesus, os Evangelistas, iluminados por Deus, encontraram uma solução:
demonstrar que tudo que havia acontecido com Jesus, na sua paixão e
morte, estava já anunciado no Antigo Testamento. Que todos os
sofrimentos do Mestre estavam previstos por Deus e ocorreram de acordo
com sua vontade. E até os mínimos detalhes de seu escandaloso final
aconteceram "para que se cumprissem as escrituras".
Como o livro mais lido, conhecido e meditado pela piedade judia era o
livro dos salmos, aí neste livro foram os cristãos buscar elementos
para provar as circunstâncias proféticas da morte do Senhor. Por isso na
paixão de Jesus, mais do que em nenhum outro momento de sua vida, se
acumulam as referências aos salmos (mais de vinte), como se tivessem
querido concentrar aí todo o cumprimento das predições bíblicas.
É por isso mesmo que os relatos da paixão e morte de Jesus não dão
uma crônica exaustiva dos fatos. Passam por cima de muitas cenas
importantes. Deixam outras na penumbra e se detém naquelas que têm apoio
nas sagradas escrituras.
Cada comunidade cristã, e cada Evangelista mais tarde, fizeram o que
foi possível neste esforço de explicar, mediante as profecias dos
salmos, "o escândalo da cruz".
E quais foram os salmos que encontraram? Já no começo da paixão,
enquanto Marcos e Lucas dizem que eram os sumos sacerdotes e os escribas
que conspiravam contra Jesus e andavam procurando um jeito de
prendê-lo, Mateus, mais cauteloso, diz que foram "os chefes", e menciona
"uma reunião" que fizeram para pegá-lo (26,3-4). Porque assim se
cumpria a profecia do salmo 2,2: "os chefes se reuniram contra Deus e
seu Messias". Também a traição de Judas é explicada por São João (13,
18) com a profecia de um salmo. O evangelista afirma que o sucedido foi
"para que se cumprisse a escritura (do salmo 41,10) que diz: "aquele que
comparte comigo o pão se voltou contra mim" e mais adiante completa:
"nenhum deles se perdeu exceto aquele que devia perder-se, para que a
escritura seja cumprida"(17, 12), referindo-se ao mesmo salmo.
O fato incompreensível de que Jesus, apesar de ter passado fazendo o
bem e ajudando os mais necessitados, tenha sido odiado e rechaçado pelas
autoridades judias estava igualmente anunciado nos salmos. Jesus o diz:
"Eles me odeiam a mim e a meu Pai, porém, deste modo está sendo
cumprido o que está escrito na lei (o salmo 69, 5): me odeiam sem
motivo" (Jo 15,24). E , ao contar a terrível agonia no horto de
Getzemani, os Evangelistas relatam que Jesus fez a seus discípulos esta
confidência: "minha alma está triste até a morte" (Mt 26,38; Mc 14,34),
para que se cumprissem as palavras do salmo 42, 6 (em sua versão grega).
Ao ser preso Jesus e levado ante as autoridades, os evangelhos
referem que o Sumo Sacerdote lhe perguntou: "És tu o Messias, o Filho de
Deus Bendito?" E Ele responde: "sim, eu sou. E verão o Filho do Homem
assentado à direita do Todo Poderoso vindo entre as nuvens do céu" (Mc
14,62). Assim se cumpria o que foi dito no salmo 110,1, que para os
Evangelistas profetizava a glorificação de Jesus por Deus Pai.
Também a intervenção de testemunhas falsas contra Jesus, durante o
julgamento perante o Sinédrio (Mt 26,59; Mc 14,55), estava prevista nos
salmos 27, 12 e 35, 11: "Levantaram contra mim testemunhos falsos e me
perguntaram o que não sei".
Assim que condenaram à morte o Senhor, levaram-no para o Monte
Calvário. Então Mateus diz que lhe ofereceram "vinho com fel" e diz que
Jesus "provou a bebida" (27,34) para demonstrar que estava se cumprindo a
profecia do salmo 69,22 (em sua versão grega), que diz: "deram-me fel
em alimento".
Quando tiraram as vestes de Jesus para crucificá-lo, chama nossa
atenção que os quatro Evangelhos consignam o detalhe insignificante dos
soldados repartindo suas roupas e sorteando a sua túnica. E João explica
porque era importante este detalhe: porque assim se cumpria "a
escritura (do salmo 22,9) que diz: "repartiram meus vestidos e lançaram
sorte sobre minha túnica" (19, 24). Portanto, até este fato trivial da
destinação da roupa de Jesus, estava previsto no plano de Deus.
Ao contar as zombarias que faziam contra Jesus as pessoas que
passavam pelo lugar da crucificação, Mateus diz que "moviam a cabeça e
diziam: "Ele confiou em Deus... que Deus o livre agora, se é que tem
algum interesse por Ele" (27,39). Para se cumprir o que foi anunciado no
Salmo 22, 8-9: "Movem a cabeça e dizem: confiou no Senhor. Que Ele o
livre... se é que O ama". E Lucas acrescenta que "caçoavam de Jesus
(23,35), para incluir a profecia do mesmo salmo que diz: "todos caçoam
de mim" (22,8).
Em meio de terríveis tormentos, e já próximo de sua morte, Jesus
exclama: "tenho sede". Diz São João que isto aconteceu "para que se
cumprisse a escritura (do salmo 22,16) que predizia: "minha boca está
seca como um caco de telha, e minha língua se prega no céu da boca".
Então os saldados correram e lhe ofereceram vinagre e Jesus bebeu (Jo
19, 29). Com isto se cumpria uma nova profecia, a do salmo 69, 22:
"quando tinha sede me deram vinagre".
Chega, então, o momento das últimas palavras de Jesus: com grande
perspicácia, Mateus e Marcos sustentam que foram: "Meu Deus, meu Deus,
por que me abandonaste?" (Mt 27, 46; Mc 15,34). Deste modo, como já
dissemos, mostravam Jesus como o homem inocente e bom que sofria
injustamente e que seria logo reabilitado por Deus por ser bom e
inocente. Lucas, que compôs seu Evangelho para leitores não judeus, e
portanto pouco conhecedores dos salmos, teve receio de escandalizá-los
com estas palavras, e preferiu pôr na boca de Jesus outra expressão,
também de um salmo (31,6), porém menos ambígua: "Pai, em tuas mãos
encomendo o meu espírito" (Lc 23,46). Estas foram para Lucas, as últimas
palavras pronunciadas por Jesus.
O que aconteceu ao morrer Jesus estava também previsto pelos salmos.
Lucas, por exemplo, anota que "seus familiares se mantinham à distância"
presenciando àquela cena dialaceradora (23, 49), porque o salmo 38, 12
havia profetizado: "meus familiares se conservam à distância".
E João (19, 36) relata que os soldados quebraram as pernas dos dois
ladrões crucificados junto com Jesus, mas não quebraram as pernas de
Jesus. Porém transpassaram o seu lado com uma lança, para que se
cumprisse a profecia do salmo 34, 21: "Deus cuida de todos seus ossos, e
nenhum será quebrado".
Os primeiros cristãos buscaram no Antigo Testamento a razão porque
Jesus teve que sofrer uma morte tão cruel e injusta. E descobriram que
nos salmos, especialmente nos salmos de meditação e confiança, estavam
antecipados todos os acontecimentos da paixão. Nos salmos se achava a
explicação teológica dos fatos sucedidos. Sua morte, portanto, não tinha
sido um "castigo de Deus". Jesus não era senão o justo que tinha vindo
para cumprir as profecias sobre este inocente que aparecia nos salmos
sofrendo injustamente, carregando o peso do ódio de seus inimigos, porém
com toda sua confiança posta em Deus.
Os relatos da paixão de Cristo são mais relatos teológicos. Os
Evangelistas quiseram explicar qual era o sentido da morte de Jesus. Daí
as grandes lacunas existentes nestas narrações.
Os relatos da paixão foram compostos para leitores que acreditavam e
ao apresentá-los como cumprimento de citações e passagens do Antigo
Testamento, ainda que algumas de pouco interesse (como repartir as
vestes, o vinagre oferecido), os autores pretendiam unicamente ensinar
que Jesus era, na verdade, o enviado de Deus. Que, estando previsto pela
palavra de Deus tudo o que viveu em sua paixão, Jesus podia ser aceito
sem receios como salvador da humanidade.
No dia em que Jesus morreu, Deus guardou o mais profundo silêncio. Um
silêncio atroz, que parecia dar razão aos verdugos que o condenaram.
Entretanto os primeiros cristãos descobriram que Deus não se calara. Que
desde muitos séculos, desde os salmos, Deus vinha gritando que o seu
Filho deveria padecer a fim de se manter fiel ao amor por ele pregado.
Mas que, apesar de tudo, Deus estaria a seu lado para sustentá-los e
cuidar dele até o fim.
Deus prometeu cuidar sempre dos homens, especialmente dos que sofrem
ou passam dificuldades. E Deus cumpre a sua promessa. Quando nos
sentirmos descorçoados por causa dos problemas e das angustias da vida,
nunca pensemos que Deus guarda silêncio. Isto é só a primeira parte do
salmo de nossa vida. Falta ainda a segunda parte. E Deus é fiel até o
fim.
Pe. Ariel Alvarez Valdés
Tierra Santa, março e abril de 2000
Tradução: Mons. Nelson Rafael Fleury